Decisão da Simulação de Julgamento

 

Decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Círculo de Lisboa

Processo: 12347/2023

Tribunal: TAF de Lisboa

Data da decisão: 16/05/2023

Relatores: Alice Margarido Fernandes, Andreia Malaquias Tomé, Frederica Gomes Marques Rosa, Manuel Ruah Crujeira e Marta Raquel Rodrigues – coletivo de juízes

Descritores:

              LEGALIDADE DA NORMA;

              INCOMPETÊNCIA MATERIAL E TERRITORIAL;

              NOTIFICAÇÕES;

              AUDIÊNCIA DOS INTERESSADOS;

              PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE;

              PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DE DIREITO PÚLICO.

 

Decisão Texto Integral

I.                    RELATÓRIO:

João Maria Castiço, residente na Suíça, veio intentar uma AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS E RESSARCIMENTO DE DANOS CAUSADOS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA que teve por objeto o despacho de 2023, de aplicação do que decorre do “Pacote Mais Habitação”, da autoria do Presidente da Câmara Municipal de A-dos-Cunhados, José Arrebatado.  

 

O Autor apresentou alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

                    I.            O Autor, João Maria Castiço, alega que o Presidente da Câmara, José Arrebatado, violou o princípio da legalidade, porquanto o conceito de “apartamentos devolutos”, vertido no “Programa Mais Habitação”, não engloba o termo “vivenda”.

                  II.            O Autor invoca, também, a ilegalidade da classificação do imóvel como devoluto.

                 III.            Além disso, alega a incompetência material e territorial.

                IV.            Ainda, menciona a ineficácia e invalidade da notificação. Considera que a notificação não foi recebida, por motivo não imputável ao interessado, pelo que esta não é legalmente admissível.  

                  V.            Por fim, invoca, também, a violação do dever de fundamentação do direito de audiência do interessado e a violação dos princípios da colaboração com os particulares. Refere, ainda, a violação do princípio da proporcionalidade, do princípio da justiça, do princípio da razoabilidade, do princípio da imparcialidade e do princípio da prossecução do interesse público e do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.

 

O Réu contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

I.                     A inexistência de qualquer tipo de ilegalidade, uma vez que consideram que o quadro normativo aplicável não se refere, apenas, a apartamentos, mas, sim, genericamente, a prédios urbanos e às frações autónomas.

II.                   A inexistência de qualquer tipo de incompetência material e territorial, o que foi justificado com preceitos legais.

III.                 Considera absolutamente excecional que o Autor pretenda sustentar que a notificação não produziu os seus efeitos, porque a notificação não teria chegado ao conhecimento daquele por motivo que lhe é exclusivamente imputável.

IV.                Da mesma forma, considera não existir ilegalidade por violação dos restantes princípios e direitos supramencionados.

 

 

II.            FUNDAMENTAÇÃO

 

A – Factos Provados

Com base nos elementos constantes dos autos e dos depoimentos das testemunhas em sede de audiência e julgamento, e com interesse para decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

1.       As propostas de lei apresentadas pelo Governo, no âmbito do “Programa Mais Habitação”, reunidas num único diploma, foram aprovadas na Assembleia da República. Nos termos do vertido no artigo 52º da Lei nº71/XV/1ª, este entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, dia 31 de março. O pedido de fiscalização sucessiva, por parte do Presidente da República, em nada interfere com a aplicação do presente decreto-lei, como decorre dos artigos 281º e 282º da Constituição da República Portuguesa.

 

2.       Da Lei nº71/XV/1ª constava uma norma que previa a “mobilização de imóveis devolutos”, há mais de 2 anos, para o regime de arrendamento forçado.

 

3.       O Autor, residente na Suíça há 6 anos, é proprietário da vivenda “Cantinho do Português”.

 

4.       O imóvel, “Cantinho do Português”, constitui residência fiscal, em Portugal, do Autor.

 

5.       O Autor, nos primeiros três anos a viver na Suíça, exerceu a profissão de pedreiro.

 

6.       Já desde 2020 que o Autor se encontra desempregado, tendo continuado a viver na Suíça.

 

7.       O imóvel, “Cantinho do Português”, encontra-se localizado no município de A-dos-Cunhados.

 

8.       O Autor, João Castiço, não vinha a Portugal há pelo menos três anos.

 

9.       O Autor foi notificado, por via eletrónica, para exercer o seu direito de audiência, sendo que não foi prestado, para o processo em questão, qualquer consentimento prévio por parte do notificando para que pudesse ser utilizado o seu email.

 

10.    O Autor foi notificado por via postal.

 

11.   O imóvel foi considerado devoluto pela Câmara Municipal de A-dos-Cunhados, sendo que o Presidente, João Maria Castiço, notificou o Autor de tal decisão.

 

12.   O Réu é primo da Ministra da Habitação.

 

 

B – Factos Não Provados

Com relevância para a decisão da causa, não foram provados os seguintes factos:

 

1.       Que a vivenda, “O Cantinho do Português”, seria o único imóvel do Autor, em Portugal.

 

2.       O dia em que se procedeu ao arrendamento forçado, do imóvel do autor.

 

3.       Que a vivenda, “O Cantinho do Português”, após se ter procedido ao arrendamento forçado, já estaria a ser arrendada a outrem, nomeadamente, à filha da Ministra da Habitação, prima do Réu.

 

 

C – Motivação de Facto

              A convicção do Tribunal para a determinação da matéria de facto, dada como provada e não provada, resultou da análise crítica e ponderada de todos os meios de prova conjugados entre si e valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum, em conformidade com o disposto no artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil.

              Assim, em concreto, foram tomados em consideração os depoimentos de Gertrudes dos Santos Arrabal, administrativa, Emília Shneider Keller, empregada doméstica, José Ronaldo Fernandes Santos, agricultor, Maria das Neves Brinquinho Limpinho, empregada doméstica, António Bem-Falante D’Oliveira e Albuquerque, vereador e Carla Tagarela Peixoto de Azevedo, administrativa.

              A dinâmica dos factos foi descrita de forma simples e espontânea no depoimento de Emília Shneider Keller, empregada doméstica e namorada do Autor. Começa por explicar que o Autor reside na Suíça há seis anos – facto que é incontestável e confirmado por todos os depoimentos.

Quanto aos factos 3) e 4), valoraram-se os depoimentos de todas as testemunhas, tendo aquelas, unanimemente, referido que o Autor vivia na Suíça há seis anos e que a sua residência fiscal, em Portugal, era a vivenda denominada por “Cantinho do Português”.

              Emília Shneider Keller, demonstrou conhecimento direto da factualidade de João Castiço, seu companheiro, estar desempregado há três anos, sendo que, anteriormente, havia trabalhado como pedreiro. O referido pela testemunha permitiu concluir, com a necessária certeza e segurança, que o Autor, nos últimos três anos, reside com a testemunha na Suíça e é sustentado pela mesma em virtude da relação amorosa que mantêm.

              Ainda em relação ao facto de o Autor estar desempregado, na Suíça, há três anos, o depoimento da testemunha Maria das Neves Brinquinho Limpinho não foi valorado, porque se demonstrou confuso, impreciso e contendo algumas contradições, nomeadamente, quanto ao facto de a mesma ter afirmado que João Castiço sempre trabalhou na Suíça para logo a seguir dizer que tinha trabalho em Portugal.

              Deste modo, conjugando, entre si, estes meios de prova, consideram-se provados os factos 5) e 6).  

              Quanto ao facto 7), no que concerne à alegação fáctica da localidade A-dos-Primos, a mesma torna-se ininteligível, por virtude de não existir tal localidade em Portugal. Não obstante as testemunhas do autor terem afirmado que aquela localidade existia, o que bem sabemos não corresponder à verdade. Efetivamente é público e notório que Portugal Continental tem trezentos e oito municípios, sendo que não consta em nenhuma das listas públicas de municípios, a localidade de A-dos-Primos.

              Assente nos depoimentos de José Ronaldo Fernandes Santos e de Emília Shneider Keller, foi dado como provado que o Autor é pessoa de fracos recursos financeiros, razão essa que não lhe permitia custear as viagens a Portugal, pelo que é dado como provado que, efetivamente, não se desloca ao país há pelo menos três anos. Tendo-se, assim, considerado provado o facto 8).

              As testemunhas Gertrudes dos Santos Arrabal e Carla Tagarela Peixoto de Azevedo, funcionárias da Câmara, de forma direta, clara e objetiva afirmaram que procederam ao envio do email para o senhor João Maria Castiço. Assim, considera-se provado o envio do dito email. Aquelas testemunhas, também, de forma clara e objetiva, afirmaram que muitas vezes os emails, remetidos por aquela edilidade, vão para o spam dos destinatários.  

              Pelo depoimento das testemunhas Emília Schneider Keller e Gertrudes dos Santos Arrabal, foi dado como provado que a notificação foi remetida para o Autor. Atente-se que a testemunha Gertrudes dos Santos, inclusivamente, referiu que foi colocar tal carta no correio, tendo a mesmo sido remetida para o Autor e para o seu domicílio na Suíça. Ainda, a testemunha Emília Schneider Keller, namorada de João Maria Castiço, mencionou que o Autor tinha por hábito não ir com periodicidade à caixa do correio, pelo que aquela muitas vezes estava atulhada de correspondência, chegando até a cair para o chão. Assim, conjugando, entre si, estes meios de prova, consideram-se provados os factos 9) e 10). 

              Relativamente ao facto 11), o depoimento prestado por Gertrudes dos Santos Arrabal, secretária do Réu, foi bastante explícito, objetivo e claro, pelo que se deu por provado que o imóvel do Autor foi considerado devoluto pela Câmara Municipal e tendo sido, apenas, o Presidente da Câmara o responsável por notificar o Autor. Do depoimento de António Bem-Falante D’Oliveira e Albuquerque, Vereador, e de Carla Tagarela Peixoto de Azevedo, Administrativa, quanto à matéria fáctica em apreço, não resultaram contradições, pelo que, se considera provado o já anteriormente referido.

Por último, e relativamente ao facto de quem habita o imóvel, o depoimento prestado pelas testemunhas Maria das Neves Brinquinho Limpinho, António Bem-Falante D’Oliveira e Albuquerque e Carla Tagarela Peixoto de Azevedo, vai ao encontro de que o imóvel estaria a ser habitado pela filha da Ministra da Habitação, prima do Réu. No entanto, as testemunhas Gertrudes dos Santos Arrabal, Emília Shneider Keller e José Ronaldo Fernandes Santos prestaram um depoimento completamente contrário ao referido por aquelas. Assim, não foi possível fazer prova de quem habitava o imóvel.

Uma vez que a prova testemunhal é contraditória, caberia ao Autor, que alega tal facto, fazer prova de quem habita o imóvel, por exibição do contrato de arrendamento, bem como da fatura da luz e da água e dos respetivos comprovativos de pagamento. Ora, não tendo apresentado tais provas documentais, que se consideram essenciais e determinantes para dar tal facto como assente, em face da prova testemunhal que foi, repita-se, contraditória, então, é dado como não provado que a filha da Ministra da Habitação habite em tal imóvel.

 

D – Enquadramento Jurídico-Legal

1 – Da Alegada Violação do Princípio da Legalidade

Consta do artigo 2º do Decreto-Lei 159/2006, de 8 de agosto, e do artigo 21º, nº1 da Lei nº71/XV/1ª, que para efeitos de imóveis aptos ao arrendamento forçado, seriam consideradas, nos termos dos dispositivos legais, as “frações autónomas […] partes de prédio urbano suscetíveis de utilização independente, de uso habitacional, classificados como devolutos, nos termos do Decreto-Lei n.º 159/2006, de 8 de agosto”. O quadro normativo aplicável não se refere, apenas, a apartamentos, mas sim a prédios urbanos e frações autónomas. Uma vivenda, como a moradia “Cantinho do Português”, integra-se, evidentemente, no conceito de prédio urbano.

Assim, o princípio da legalidade, consagrado no artigo 3º, nº1 do Código de Procedimento Administrativo, não foi violado, uma vez que os órgãos da Administração Pública atuaram em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes foram conferidos.

 

2 – Da Alegada Ilegalidade da Classificação do Imóvel como devoluto

Nos termos do artigo 3º, nº1 do Decreto-Lei 329/95, de 29 de novembro, consideram-se emigrantes portugueses “os cidadãos portugueses que tiverem deixado o território nacional para, no estrangeiro, exercerem uma atividade remunerada e aí residirem com carácter permanente”.

              Determina por sua vez a alínea e) do artigo 3º, do Decreto-Lei nº159/2006 que não se considera devoluto o prédio urbano ou fração autónoma “que seja a residência em território nacional de emigrante português, tal como definido no artigo 3º do Decreto-lei nº323/95, de 29 de novembro, considerando-se como tal a sua residência fiscal, na falta de outra indicação;”.

              Assim, conciliando a presente matéria de direito com os factos dados como provados, como seja: o Autor viver na Suíça e não desempenhar nenhuma atividade remunerada há 3 anos, então, este não é, e em face dos mencionados dispositivos legais, emigrante. A verdade, é que é considerado emigrante aquele que tiver deixado o país para exercer uma atividade remunerada no país de destino. Logo, a presente norma exige dois requisitos: a saída do país e o exercício de uma atividade remunerada no país de destino. Verificando-se que o autor saiu do país, mas que não exerce, no país de destino, uma atividade remunerada, então, não poderá ser considerado emigrante.

Ainda, a presente matéria de direito, conciliada com o facto dado como provado, de que o Autor não habitava, nem utilizava o imóvel há três anos, permite classificar o mesmo como devoluto ao abrigo do artigo 2º do Decreto-Lei 159/2006, de 8 de agosto.

A ratio legis, penaliza aqueles que tendo saído para o estrangeiro, não se encontrem a trabalhar, caso que se verifica relativamente ao Autor. Assim, o imóvel do Autor é considerado como devoluto, nos termos do estabelecido no Decreto-Lei 159/2006, de 8 de agosto.

 

3 – Da Alegada falta de competência material

Com base, no artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 159/2006, a classificação dos prédios urbanos e frações autónomas que se encontrem devolutos compete aos municípios. Anteriormente, foi dado como provado que o imóvel, “Cantinho do Português”, foi classificado como devoluto pela Câmara Municipal, tendo sido o Presidente da Câmara a notificar o Autor do mesmo. Ora, o artigo 21º, nº2 da Lei nº71/XV/1ª atribui competência ao município, territorialmente competente, para remeter ao respetivo proprietário a notificação de que o seu imóvel foi considerado, pelo mesmo, como devoluto.

Na verdade, a lei referida, anteriormente, não especifica qual o órgão que terá competência para qualificar o imóvel como devoluto, sendo que foi dado como provado que, quem classificou o imóvel como devoluto foi a Câmara Municipal de A-dos-Cunhados. Devido a esta imprecisão do legislador, de não determinar quem tem competência para classificar o imóvel como devoluto, deve ser discutido se poderia ser a Câmara a fazê-lo. O Regime Jurídico das Autarquias Locais, vertido na alínea w) do artigo 33º, prevê a competência da Câmara Municipal para ordenar a demolição de edifícios que se encontrem em estado de ruína. Podemos, assim, concluir que a competência para proceder ao arrendamento forçado, seria, pelo mesmo raciocínio lógico, uma competência da Câmara Municipal. De facto, infere-se que as competências relacionadas com a gestão da habitação e a regulação da construção se encontram atribuídas à Câmara Municipal.

No entanto, o Presidente da Câmara, Réu, apenas se limitou a notificar o particular para dar efetividade à decisão proferida pela Câmara Municipal de classificação do imóvel como devoluto. Na verdade, o Presidente da Câmara, apenas, se dispôs a proceder ao envio de uma correspondência definida por parte da Câmara Municipal, sendo que o artigo 35º, alínea l) da Lei das Autarquias Locais concede-lhe competência para tal. Pelo que se considera que não terá existido um vício de incompetência, como decorre do artigo 163º, nº1 do Código de Procedimento Administrativo.

 

4 – Da Alegada Falta de Competência Material

              O Município é um conceito jurídico cujas delimitações territoriais decorrem da lei. E, de acordo com a lei, o imóvel em causa integra a circunscrição territorial de A-dos-Cunhados. Conciliando a presente matéria de direito com o facto dado como provado, como seja: a vivenda o “Cantinho do Português” encontrar-se situada no município de A-dos-Cunhados, a Câmara Municipal tinha competência territorial para tomar decisões sobre o mesmo imóvel.

 

5 - Da Alegada Ineficácia da Notificação

              No que diz respeito à forma de notificação, de acordo com a alínea b) do número 2 do artigo 112º do Código de Procedimento Administrativo, a notificação eletrónica requer o consentimento prévio do destinatário. Ficou provado que o Autor não consentiu que o seu correio eletrónico fosse utilizado no processo em questão, pelo que existe um vício de forma, e consequentemente esta notificação é considerada inválida e ineficaz.

              No entanto, o Autor foi, também, notificado por carta, nos termos do artigo 112º, nº1, alínea a), sendo, assim, da sua responsabilidade agir com diligência e verificar a sua caixa de correio para tomar conhecimento da comunicação recebida.

              O artigo 110º, nº3 do Código de Procedimento Administrativo é bastante explícito, claro e direto ao referir que a notificação deverá indicar a entidade que instaurou o procedimento, o órgão responsável pela respetiva direção, a data em que o mesmo se iniciou, o serviço por onde corre e o respetivo objeto. Em nenhum momento, neste artigo, é referido que deverá ser o órgão responsável pela direção do procedimento a mandar notificar o interessado, pelo que não é de todo válido o alegado pelo Autor.

 

6 – Da Alegada Violação do dever de fundamentação

Quanto à violação do dever de fundamentação, invocada pelo Autor, o artigo 153º do Código de Procedimento Administrativo estabelece a obrigação de fundamentação expressa das decisões administrativas, incluindo a indicação dos fundamentos de facto e de direito que as sustentam. O dever de fundamentação, neste caso, decorre do artigo 152º, nº1 do Código de Procedimento Administrativo. Ora, o Réu cumpriu essa obrigação ao proceder à fundamentação expressa da classificação do imóvel como devoluto, conforme estabelecido no artigo 153º do Código de Procedimento Administrativo, mencionando os motivos de facto, como a desocupação do imóvel por mais de 2 anos, e os fundamentos de direito estabelecidos no artigo 21º, nº1 da Lei nº71/XV/1ª.

A falta de inclusão da fundamentação da proporcionalidade da medida na notificação não constitui uma violação do dever de fundamentação. A Administração limita-se a concretizar e aplicar a lei, estando autorizada a notificar os interessados para que apresentem as suas considerações, concedendo-lhes um prazo mínimo de 10 dias para o efeito, o que consta do artigo 122º, nº1 do Código de Procedimento Administrativo.

O direito de audiência do particular não foi afastado no presente caso. A Administração deve conceder ao particular um prazo adequado para exercer o seu direito de audiência. No caso em apreço, o Réu concedeu ao Autor um prazo de 80 dias, que é considerado como manifestamente dilatado, para que o Autor pudesse exercer o seu direito de audiência.

Como foi dado como provado, o Autor não respondeu à notificação, dentro do prazo concedido para exercer o seu direito de audiência, pelo que se considera que o particular não pretende colaborar com a Administração. Assim, se o particular não pretende colaborar com a Administração nos procedimentos que lhe dizem diretamente respeito, a Administração não pode coercivamente obrigá-lo a exercer o seu direito de audiência na relação com a Administração.

A ausência de resposta do particular, dentro do prazo concedido, não determina a ilegalidade da atuação administrativa, por preterição de um elemento do procedimento, conforme estabelecido no artigo 21º, nº4 da Lei nº71/XV/1ª. A Administração agiu de acordo com a lei ao prosseguir com o procedimento de classificação do imóvel como devoluto, mesmo diante da ausência de resposta do Autor.

 

7 – Da Alegada Violação do Direito de Audiência do Interessado

              Em relação ao direito de audiência do interessado, foi dado como provado que o Réu notificou o Autor do projeto de decisão de classificar o imóvel como devoluto. De acordo com a conceção defendida por Vasco Pereira da Silva e Freitas do Amaral, o particular deve ser notificado a pronunciar-se do sentido provável da decisão administrativa, bem como a pronunciar-se sobre a mesma. No entanto, não ficou provado que o Autor tivesse sido notificado, da decisão de classificação do imóvel como devoluto com a consequente submissão do imóvel ao regime do arrendamento forçado. Logo, existiu uma violação do disposto no artigo 121º, nº1 do Código de Procedimento Administrativo.

Com base na alínea a) do número 5 do artigo 163º do Código de Procedimento Administrativo, o efeito anulatório não se aplica quando o ato anulável não poderia ser diferente devido ao seu conteúdo vinculado, ou quando a análise do caso concreto permite identificar apenas uma solução legalmente possível diante dos factos apresentados. Por sua vez, a alínea c) do mesmo número e artigo exclui os efeitos anulatórios do ato, se for comprovado, sem margem para dúvidas, que o mesmo ato sem o vício teria sido praticado com o mesmo conteúdo.

Considera-se que a lei é clara quanto às consequências estabelecidas para os imóveis devolutos em relação aos quais os particulares não cumprem o dever de uso.

Portanto, o facto de não se ter procedido à notificação da decisão da classificação do imóvel e sua consequência, tal omissão não alteraria o sentido da decisão, uma vez que a determinação da classificação e do arredamento forçado está legalmente definida e a produção dos seus efeitos não está dependente da notificação da decisão definitiva.

 

8 - Alegada violação do princípio da colaboração com os particulares e do princípio da participação

              Em relação à alegada violação do princípio da colaboração com os particulares e do princípio da participação, estes encontram-se consagrados no Código de Procedimento Administrativo, nos respetivos 11º, nº1 e 12º. Tais, princípios pretendem assegurar o direito dos interessados a serem ouvidos e a participarem no procedimento administrativo. Este direito engloba a oportunidade de apresentar argumentos, informações e provas relevantes para a tomada de decisão.

No presente caso, não houve qualquer restrição, indevida, ao direito de audiência do particular, uma vez que o Autor foi devidamente notificado e foi-lhe concedido o direito de se pronunciar sobre a matéria em apreço. Além disso, foi atribuído ao Autor um prazo adequado, conforme estabelecido no “Programa Mais Habitação”, para exercer a sua participação no procedimento administrativo.

Conciliando-se os factos apresentados com o direito aplicável, conclui-se que não ocorreu qualquer violação dos princípios da colaboração com os particulares e da participação. O direito de audiência do particular foi respeitado, garantindo ao Autor a oportunidade de emitir pronúncia quanto à matéria em apreço e contribuir para o processo decisório.

 

9 – Alegada Violação do Princípio da Proporcionalidade

              Como já foi, anteriormente, esclarecido, nos termos do vertido no artigo 52º da Lei nº71/XV/1ª, esta entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, dia 31 de março. O pedido de fiscalização sucessiva, por parte do Presidente da República, em nada interfere com a aplicação do presente decreto-lei, como decorre dos artigos 281º e 282º da Constituição da República Portuguesa.          

O “Programa Mais Habitação”, foi transposto para a Lei nº71/XV/1ª que está em vigor e deverá ser, tal como todas as leis, aplicada, nos termos em que se justifique.

O presente Tribunal, Tribunal Administrativo e Fiscal do Círculo de Lisboa, não tem competência para fiscalizar a constitucionalidade da norma em si, já que essa função é reservada ao Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional está, atualmente, a avaliar a matéria em causa, mas ainda não tomou nenhuma decisão. Durante essa ponderação, há uma contraposição entre dois direitos fundamentais: o direito à propriedade privada e o direito à habitação, ambos com consagração Constitucional, mas sujeitos a restrições legítimas por motivos imperiosos.

O Tribunal Constitucional avalia a constitucionalidade com base em diversos parâmetros, incluindo o princípio da proporcionalidade, que é crucial nessa análise. Embora não seja apropriado discutir a questão constitucional em detalhe, o disposto na lei parece ser justificado pela necessidade de se dar uma resposta à crise habitacional que o país enfrenta, tendo em consideração a função social que o direito de propriedade exerce no ordenamento jurídico.

No entanto, devido à complexidade do assunto em análise, o Tribunal Constitucional, ainda, não tomou uma decisão, pois exige-se um estudo aprofundado e criterioso para garantir a coerência e a segurança jurídica nas decisões que serão tomadas.

Assim, é importante voltar a salientar que uma vez que a lei se encontra em vigor, a mesma deverá ser aplicada, não sendo fundamento para a sua não aplicação o facto de o Tribunal Constitucional estar a efetuar a sua apreciação.

O princípio da proporcionalidade, é um princípio que além de vir consagrado no Código de Procedimento Administrativo, vem, ainda, consagrado na Constituição. É um princípio europeu e da ordem jurídica global. Trata-se de um dos grandes princípios que tem sido, sempre, determinado num quadro das relações internacionais. Este vem permitir um controlo integral do poder administrativo, vem “roubar” uma área que até aí era de mérito e vai transformar essa área numa área de legalidade, e por isso é que tem uma importância decisiva. A proporcionalidade implica três noções: noção de necessidade, noção de adequação e noção de ausência de lesão desproporcional em relação a determinados indivíduos.

Perante o caso em análise, o despacho dado no sentido de se proceder ao arrendamento forçado do imóvel do Autor considera-se necessário em face da crise habitacional em que o país se encontra. Efetivamente, esta crise motivou o Governo da República a determinar que um imóvel é considerado devoluto e, consequentemente, sujeito ao arrendamento forçado, desde que não seja habitado há dois anos. Considera-se, também, adequado, porquanto o seu direito de propriedade, ainda que limitado, não fica colocado em causa, vindo a conceder-se a possibilidade de famílias com necessidades económicas poderem ter acesso a um arrendamento a preços mais acessíveis. Finalmente, considera-se, também, proporcional porquanto este dispositivo legal se aplica a todos aqueles que se encontrem nas circunstâncias do Autor.

 

10 – Alegada violação do princípio da Justiça

              Embora o Autor argumente que o arrendamento forçado viola o princípio da justiça, uma vez que frustra o direito de propriedade conquistado pelo Autor ao longo de uma alegada vida de trabalho e sacrifício, tais alegações não se sustentam.

Não foi dado como provado que o Réu conhecia as circunstâncias pessoais do Autor que levaram à aquisição da propriedade de habitação. Além disso, não ficou dado como provado que a vivenda “Cantinho do Português” seria o único imóvel do Autor. No entanto, tais fatores não são relevantes para a decisão de proceder ao arrendamento forçado do imóvel em questão.

Ressalve-se, ainda, que a indeterminação do quadro legal que leva ao arrendamento forçado de imóveis devolutos não entra em conflito com o princípio da determinabilidade. Tal indeterminação não contraria o Estado de Direito democrático, uma vez que o legislador possui a prerrogativa de restringir direitos fundamentais dos cidadãos por meio de atos legislativos, de acordo com a reserva de lei formal da Assembleia da República, estabelecida na alínea b) do número 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa.

Portanto, com base nos fundamentos apresentados, acolhe-se os argumentos do Réu considerando que não houve violação do princípio da justiça no processo de arrendamento forçado do imóvel em questão.

 

11 – Alegada Violação do Princípio da Razoabilidade

              Com base na matéria dada como provada, não há evidência de qualquer violação do princípio da razoabilidade, como alegado pelo Autor.              

O princípio da razoabilidade, no contexto do Direito Administrativo, requer uma análise equilibrada e proporcional, considerando-se as circunstâncias específicas de cada caso. Não há nenhuma disposição legal que restrinja a possibilidade de arrendamento forçado em determinados municípios ou que limite a solução para a crise habitacional apenas à Área Metropolitana de Lisboa ou do Porto.

Assim, a alegação do Autor não encontra sustentada juridicamente, uma vez que não há nenhum fundamento legal para restringir o arrendamento forçado com base em critérios geográficos. A resolução da crise habitacional requer medidas amplas e abrangentes, levando em consideração as necessidades habitacionais em todo o país.

 

12 – Alegada violação do princípio da prossecução do interesse público e ao respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, assim como ao princípio da imparcialidade

No que diz respeito ao princípio da prossecução do interesse público e ao respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, assim como ao princípio da imparcialidade, está explicito no artigo 5º do Código de Procedimento Administrativo, que o respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares estão assegurados, bem como a prossecução do interesse público.

De acordo com o “Programa Mais Habitação”, o arrendamento compulsivo de imóveis devolutos pode ser decidido quando um particular, devidamente notificado, não utiliza o imóvel classificado como devoluto. Pelo que o Réu se limita a executar aquilo que está inequivocamente previsto na lei, em conformidade com o artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo, que determina a atuação administrativa em conformidade com a lei vigente.

A utilização do arrendamento compulsivo, conforme estabelecido pela legislação aplicável, está em consonância com o interesse público e visa combater a crise habitacional que afeta o país.

O princípio da imparcialidade está consagrado no artigo 266º nº2 da Constituição e no artigo 9º do Código do Procedimento Administrativo, que determina que a Administração deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entre em relação.

   O princípio da imparcialidade estabelece a necessidade de a Administração atender aos interesses públicos e privados de forma ponderada, sem permitir que os seus próprios interesses particulares interfiram no procedimento. Este princípio tem duas vertentes: uma negativa e uma positiva. No que diz respeito à vertente negativa, a imparcialidade estipula que os titulares de órgãos e os agentes da Administração Pública estão impedidos de intervir em procedimentos ou que digam respeito a questões do seu interesse pessoal, atos ou contratos que digam respeito a questões próprias do seu interesse pessoal, familiar, ou pessoas com que tenham tido especial proximidade, sob pena da sua conduta ser desviada do desejado. Isto ocorre de modo que não exista a suspeita de parcialidade, sendo, por isso, o dever de não intervir em certos assuntos consagrados novamente nos artigos 69º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo.  

              Em relação à vertente positiva, esta determina que a Administração tem a obrigação de antes de tomar uma decisão, realizar uma ponderação de todos os interesses públicos e privados relevantes no caso. Assim, seriam considerados parciais os atos que não resultem desta ponderação dos interesses juridicamente protegidos. Neste caso, foi a Câmara Municipal que decidiu e o Réu apenas notificou o Autor dessa mesma decisão. Assim, o facto de o Réu ser primo da Ministra da Habitação não coloca claramente em causa uma violação do princípio da imparcialidade, uma vez que esta proximidade familiar não nada influenciou a decisão da Câmara em proceder ao arrendamento forçado.

Conforme os factos dados como provados, o único ponto de contacto entre o Réu e a Senhora Ministra da Habitação é o facto de serem primos, sendo esse facto irrelevante para a decisão em questão, uma vez que a decisão é tomada com base no princípio da prossecução do interesse público, de acordo com o artigo 4º do Código de Procedimento Administrativo.

 

III.            DECISÃO:

              Por todo o exposto, julgo a ação totalmente improcedente, por não provada. Produzindo o despacho emitido pelo Câmara Municipal de A-dos-Cunhados os seus efeitos.

 

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